Sobre

por Tárik de Souza

Segundo o velho jargão, uma imagem vale mais que mil palavras. Mas, quantos sons será capaz de transmitir? Utilizando as superfícies de boxes, capas, encartes e mesmo selos, Ruth Freihof traduz em eloquentes e sensoriais artes gráficas os conceitos musicais dos discos que, num sentido amplo, embala, encapa, encarta, sela e, principalmente, acolhe. Seu imaginário é parceiro das sonoridades emanadas da fonografia. Uma viagem complementa a(s) outra(s). E amplia seus sentidos – da audição para a retina. Como tatuagens na pele dos sons.

Fluminense de Campos, nascida em 1951, mas criada no Rio, Ruth, uma portentosa autodidata, fez cursos informais com expoentes como Anna Bella Geiger (“ela foi minha mentora e abriu caminho para a abstração”), Walter Marques com quem teve aulas de gravura no MAM, onde também estudou com Ivan Serpa. “Ao terminar o curso o científico, fiz estágio em uma agência de publicidade e depois com minha tia Raquel Feferbaum, na época aluna da Belas Artes, abrimos um escritório de artes gráficas, o RF2.” Entre 1972 e 1975, residiu na Bélgica e participou do movimento flamengo “Mass Moving”, de artes, em Bruxelas, Antuérpia e Amsterdam. “No contexto revolucionário da época, o grupo queria ir contra mundo acadêmico da burguesia, levar arte para a rua, longe dos museus e galerias. Estavam procurando novos lugares para vivenciar a arte”, distingue. Faziam isso por meio de ações lúdicas e originais como a de liberar borboletas na praça em Veneza, ou, durante os domingos sem carros, fazer piqueniques nos grandes cruzamentos da cidade, ou caminhar pelas ruas a bordo de um “ônibus ambulante”, de cuja construção Ruth participou.

Nos anos de 1975 e 1976, de volta ao Rio, foi capista do jornal Opinião, publicação independente, de oposição à ditadura militar. “Uma vez por semana, passava a noite na Lapa, fechando o jornal na redação, e depois íamos tomar café num botequim, aguardando sair da máquina para levar o jornal fresquinho para casa”, recorda. Também foi colaboradora da enciclopédia Mirador, mas, em 1977, um novo horizonte se abriu para seu trabalho. “Fiz algumas capas para Sigla/Som Livre. Acho que a primeira foi o mais bonito disco do Geraldinho Azevedo. Fiz com Antônio Henrique Nitzsche e fotos do Sebastião Barbosa. A inovação foi o carão do artista na capa. Aquele close bem de pertinho, que você via a alma da pessoa. Procurava usar um grão ou um desfocar dando mais o clima do artista”, descreve. 

“Depois, veio o LP ‘Samba, Suor e Ouriço’ volume 2, com fotos do Sebastião Barbosa, de Carlinhos do Pandeiro. É uma capa quase abstrata, valorizo o clima e a batida do pandeiro, tentando passar a idéia de movimento. Eu fazia direção de arte, acompanhava as sessões de fotos ou escolhia foto de arquivo do fotógrafo. Fiz muitas capas na época do João Araújo, e até um cartaz para a peça de teatro do Cazuza, ele era muito jovem na época”, reconstitui ela. “Foram muitas as parcerias com o querido amigo, o fotógrafo Cafi. Destaco a de Olivia Hime, ‘Segredo do meu coração’, de 1982. Olivia e eu gostamos, pois, na contracapa tem ‘o’ segredo; um postal destacável com framboesas na mão dela. O texto é escrito à mão”, indica. Olivia fala da capa no vídeo da série ‘Arte na capa’ dirigida por João Felipe Freitas https://www.youtube.com/watch?v=-CTPMASNA4w

“Ainda em 1977 André Midani, presidente da Warner, me convidou para fazer a capa do Candeia, ‘Luz da inspiração’, um trabalhos de que gosto muito. Usei uma foto PB do Robson de Freitas do Candeia na cadeira de rodas na avenida vazia, e fiz a transformação. Pouco tempo depois, ele me contratou para fazer direção de arte da companhia. Aceitei mas para trabalhar em casa, e ele topou. Fazia na época capas para outras gravadoras como a CBS, Odeon e outras. Entre 1977 e 1981, trabalhei para Warner meu ‘home office’ daquela época”, compara. E narra histórias desse tempo: 

“O Raul Seixas morava ao lado da gravadora e, volta e meia, fazíamos uma visitinha à casa dele. A capa de seu disco ‘Mata virgem’ foi um processo bem interessante. O querido amigo e fotógrafo Januário Garcia alugou uma Kombi. Fomos ao jardim de pedras do MAM e Janu fotografou Raul entre as pedras. Fizemos uma ampliação da foto em tamanho natural e levamos o Raul e a foto para as Paineiras, onde ele tirou a roupa, e fotografamos a foto na floresta com a roupa dele. Não lembro como chegamos nesse malabarismo, mas era muito divertido”, brinca. Outro episódio curioso, aconteceu com o bruxo dos sons, Hermeto Pascoal. “Ele é um caso a parte, não existe… Um dia ele me chega com um desenho preto e branco e eu falei: posso colorir? E deu-se a parceria no álbum ‘Cérebro magnético’”, comemora. 

Com Belchior a troca ainda foi mais intensa. “Eu gostava de trabalhar com Belchior, ele desenhava e era muito sensível. Para o lp ‘Objeto direto’ pensei em uma capa branca com um círculo em relevo seco (alto relevo sem tinta), o nome do disco em alto relevo. No encarte, tinha uma folha de adesivo com 4 fotos. Você podia destacar uma e colar na capa. Eu gostava da capa sem nada, no meu disco nunca colei a foto”, admite.

“Na maior parte das vezes faço a direção de arte, escolho o fotógrafo e imagino tudo. Mas pode acontecer o contrário. Isabel Garcia fotografou a Elba Ramalho e me indicou para fazer a capa. Ela escolheu a foto. E entrou o nome da Elba em hot stamping ouro”, ela descreve o trabalho do álbum ‘Felicidade urgente’, que realizou para a Polygram, em 1997. 

Em 1993, Olivia Hime e Kati Almeida Braga estavam fazendo o Projeto ‘ComPasso Samba e Choro’ no Passo Imperial, e resolveram gravar os CDs da série. Aí que começou a gravadora Biscoito Fino. Elas me chamaram para fazer a logomarca, a identidade visual e criar as capas da série. Depois, vieram as capas do ‘ComPasso Clássico’, depois muitas e muitas capas. E também o primeiro site da Biscoito”, enumera. Várias capas foram para a própria diretora artística do selo, Olivia Hime (‘Alta madrugada’, ‘Máscara’, ‘Canção transparente’, ‘Serenata de uma mulher’, ‘Palavras de Guerra’) e do músico e compositor Francis Hime (‘Tempo das palavras’, ‘Navega ilumina’, ‘Choro rasgado’, ‘Sinfonia de São Sebastião do Rio de Janeiro’).

Também da Biscoito Fino, a capa do disco ‘Áfrico’, do compositor mineiro Sérgio Santos, tem uma inusitada conexão com o raro compacto ‘Zebra’, do grupo Vímana (que revelou de Lobão e Lulu Santos a Ritchie), da Som Livre. de 1977, e um livro do compositor e artista plástico Xico Chaves:

“Eu tinha um tapete de zebra no meu apartamento em Santa Teresa, que me inspirou para projetos como a capa do livro ‘Trincheira de Espelhos’ do Xico Chaves, a capa do CD ‘Áfrico’, do Sérgio Santos, a capa do compacto ‘Vímana’ e uma série de aquarelas, enfim, são os ingredientes da cozinha que vamos usando”, analisa ela. 

Seu portfólio musical é eclético e diversificado, e, pelo elevado nível das escolhas, promove uma ampla cartografia da melhor MPB. Das aquarelas translúcidas do despojado estojo de dois CDs da coletânea de 100 anos de Dorival Caymmi ao estuário de álbuns da impecável Mônica Salmaso. Alguns títulos; ‘Corpo de Baile’, em versões CD (fotos de Dani Gurgel) e DVD (Walter Carvalho), ‘Alma lírica brasileira’ em registros de estúdio e ao vivo com trabalhos dos mesmos fotógrafos, a singular ‘Iaiá’ e ‘Caipira’ (Paulo Rapoport) – uma sutil composição de elementos rurais, aclimatando a cantora essencialmente urbana ao tema proposto. Indo mais fundo na mesma linhagem, uma estilizada viola caipira emoldura a coletânea ’80 anos de música sertaneja’, da dupla Tonico & Tinoco. O virtuose popular/erudito do violão Baden Powell aparece num poliedro de imagens do estojo antológico de 13 CDs, nos célebres ‘Afro sambas’ e num álbum com seu nome, de 1979.

A ‘Pequena Notável’ desponta contemporânea e exuberante nas fotos em preto e branco de arquivo escolhidas para encapar ‘Carmen Miranda hoje’, de 2010, conforme retrofitada pelo músico Henrique Cazes. O paisagismo invade o estúdio e ilumina o porte elegante de Edu Lobo, tanto no DVD biográfico ‘Vento bravo’ como no álbum ‘Tantas marés’, ambas com fotos de Isabel Garcia. O populoso coletivo musical nordestino ‘Soro’ esculpe os nomes em desenhos sinuosos na capa, enquanto, ‘Poemas e canções’, do lavrador poeta cearense Patativa do Assaré transpira o ambiente rústico de sua lira expressionista. O grupo vocal Boca Livre contrasta duas épocas de seu percurso, no lirismo das cores do primevo ‘Bicicleta’ (1990) e nos flagrantes da passagem do tempo de ‘Amizade’, de 2009.

Das bandeirinhas e luminárias nos fios de ‘Arraial’, do grupo Vento em Madeira ao cálido encontro dos músicos Amilton Godói (pianista, ex-Zimbo Trio) e Léa Freire (flauta) em “A mil tons”, ambos pelo selo dela, Maritaca, devotado à música instrumental. Do impactante tufo de algodão branco em mãos negras, em foto de Lena Trindade, na capa de ‘Cenas brasileiras’, de Wagner Tiso, ao totêmico ‘Monumento nordestino’, coletânea de três CDs e um DVD do atemporal Luiz Gonzaga. De terno, gravata colorida e chapéu na areia da praia, ao lado de uma rodopiante porta estandarte da escola, Tom Jobim, fotografado pela mulher, Ana Jobim, circunavega em verde e rosa em ‘No Tom da Mangueira’. Um pontilhismo pictórico injeta movimento na coletânea ‘Toada moderna’, assim como o mar quebra nas letras onduladas de outra seleção de estilo, ‘Bossa nova – wave’.

“Como artista plástica abstrata, a minha paixão sempre foi o papel, e dele passei para a tela, usando tinta acrílica. Atualmente me dedico às artes gráficas e o meu trabalho é influenciado pelo olhar de artista plástica. Em muitas capas de LPs, CDs e as digitais uso desenho ou pintura como ponto de partida”, define a diretora de criação e comunicação da Passaredo Design, nome fantasia da empresa Ruth Freihof Serviços de Programação Visual Ltda. “Além da música, desenvolvo projetos de livros, web design, curadoria e museografia de exposições. Paralelamente me dedico à agroecologia contribuindo com projetos gráficos”, conta. 

Algumas exposições de seus trabalhos mapeiam seu alentado trajeto e atestam a profundidade de seu compromisso com a arte da transmissão de idéias e sentimentos através das imagens. Ou da sugestão delas.